Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República,
Exmos. Senhores Deputados,
Como é público, foram recentemente introduzidas alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) que vêm permitir a construção em terrenos rústicos e a reclassificação dos mesmos de acordo com um procedimento simplificado.
As alterações agora introduzidas terão como consequência, não a resolução do problema da habitação, mas antes a fragmentação dos terrenos rústicos e o agravamento do desordenamento do território, sem redução do custo das habitações.
Com efeito, por um lado, o regime agora introduzido permite que a construção efetuada ao abrigo do mesmo fique excluída de qualquer controlo do preço de venda em 300/1000 da área objeto da mesma; e, por outro lado, a definição do critério do valor moderado da habitação como “toda aquela em que o preço por m2 de área bruta privativa não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional ou, se superior, 125% do valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225% do valor da mediana nacional” significará, na prática, um aumento do preço médio das habitações e, consequentemente, manter-se-á a dificuldade/impossibilidade de acesso à habitação “digna e acessível” pela maior parte da população.
Acresce que este regime contraria em absoluto os interesses públicos nacionais e os princípios que regem o ordenamento territorial (como, de resto, sublinhou o Presidente da República) e, designadamente, os objetivos previstos e consagrados no RJIGT, que expressamente adotava como paradigma a contenção das áreas urbanas e a preservação dos solos rústicos, em linha com os acordos internacionais e os objetivos de combate às alterações climáticas, regeneração dos solos e defesa da natureza a que o Estado Português está vinculado.
Sejamos claros: a crise (conjuntural) da habitação deve-se à bolha imobiliária que se tem vindo a desenvolver. Não é uma crise estrutural e não resulta da inexistência de imóveis no mercado. Resulta simplesmente do preço que esses imóveis, em áreas urbanas muito concretas (em particular, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto), têm vindo a adquirir, fruto da especulação imobiliária e dos mecanismos de atração de investimento estrangeiro que têm vigorado, em particular, nos últimos 15 anos (e.g., vistos gold e RNH).
Nenhum país que preze a sustentabilidade (económica, ambiental, intergeracional) pode permitir a destruição das áreas rústicas (florestais e agrícolas) e a sua conversão em solo urbano, com os impactos na biodiversidade que isso trará, destinando a habitação parcelas de terrenos rústicos mesmo em áreas de reserva agrícola e ecológica, e permitindo, ainda por cima, a majoração da construção nesses terrenos em 20% (dos quais apenas 700/1000 deverão ser para comercialização a custo moderado). Permitir isto, em especial, quando se vive em emergência climática, é hipotecar o futuro.
A utilização, como justificação, no preâmbulo do novo diploma, do argumento segundo o qual “os dados do Instituto Nacional de Estatística, I. P., de 2024, confirmam uma tendência global negativa de número de fogos concluídos em construções novas para habitação familiar, que, a título de exemplo, em 2002, foram cerca de 125 mil fogos, contrastando com cerca de 22 mil fogos em 2022” é uma falácia: a conclusão desse número de fogos em 2002 deu-se após um ciclo de crescimento económico a nível internacional e de juros baixos, ao contrário de 2022, ano em que terminou o impacto da pandemia de covid-19, e em que não apenas o cenário em termos de taxas de juro é diverso do de 2002, como os conflitos, tensões internacionais e o aumento dos custos de matérias-primas geraram, nos últimos anos, um ambiente económico marcadamente diverso/adverso. Acresce que a população residente em Portugal tem crescido muito moderadamente (em resultado do crescimento migratório positivo), sendo o número de imóveis muito superior às necessidades da população residente. Além disso, embora o crescimento do parque habitacional entre 2011 e 2021 tenha abrandado, o que aumentou significativamente foi o número de alojamentos familiares sobrelotados, que cresceu 17,1% . Tal não se deve, portanto, à falta de imóveis: mesmo nas áreas urbanas não faltam imóveis à venda e muitos dos que são vendidos permanecem desocupados. Tal deve-se à falta de poder de compra da maior parte da população portuguesa, cujos rendimentos se mantêm baixos e não acompanharam, de forma nenhuma, o crescimento dos preços da habitação, resultantes tanto do aumento do preço dos materiais de construção e das matérias-primas, como da procura externa.
A aplicação do critério do Valor Moderado (permitindo que o preço de venda seja superior à média municipal e/ou nacional) apenas agravará essa incapacidade da maior parte da população em aceder à habitação, pelo aumento generalizado dos preços da habitação, mesmo em áreas onde esse preço era anteriormente mais reduzido do que a mediana municipal ou nacional. Ou seja, estenderá geograficamente o problema em vez de o diminuir.
As alterações agora consagradas não controlam o custo dos materiais de construção; não estabelecem limites aos preços praticados no mercado em geral (e, consequentemente, não impedem o aumento do preço médio); não regulam os preços do mercado de arrendamento; não estabelecem restrições à aquisição de imóveis por cidadãos de fora da União Europeia; não eliminam as isenções fiscais dos residentes não permanentes (que possuem níveis médios de rendimento muito superiores aos da população portuguesa); não criam um parque de habitação pública; não criam mecanismos fiscais de apoio e fomento ao arrendamento ou à aquisição de habitação própria à maior parte da população; e, por conseguinte, não permitirão senão a especulação imobiliária, a delapidação de terrenos agrícolas e florestais e a destruição do (pouco) que resta do ordenamento territorial.
Mais: o novo regime parece dirigir-se apenas aos promotores imobiliários, beneficiando-os, já que dificilmente será aplicável a um particular, proprietário de um terreno rústico, que o queira urbanizar para si próprio.
Acresce que este decreto-lei vem, pari passu, fazer uso de conceitos totalmente vagos e indeterminados e permitir que determinados critérios urbanísticos passem a ser igualmente objeto de procedimento simplificado de alteração dos instrumentos de gestão territorial, sem que se veja a razão para tal. É o caso da modificação do número de pisos e da altura máxima das edificações e de diversos outros critérios mencionados nas alíneas b) a g) do n.º 1 da nova redação do art.º 123º, que nada têm a ver com a questão do aumento do número de solos destinados à construção de habitação. Estas alterações apenas contribuirão para o agravamento do desordenamento do panorama urbanístico nacional.
Em Cascais (e, em particular, em Carcavelos) temos visto a aplicação na prática daquilo que este regime vem estender a todo o território, sem qualquer efeito na diminuição do preço da habitação.
Segundo os dados do último Censos, entre 2011 e 2021, a população residente em Cascais aumentou 3,7% (de 206.479 para 214.134 habitantes), o ganho médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem manteve-se próximo dos 1200 € em todo esse período, e o preço do m2 que era, em janeiro de 2015, de 1833€/m2, passou para 5259€/m2 em dezembro de 2024, podendo já superar em muitos casos os 8000€/m2.
Ou seja, a permissão, por via de decisão da assembleia municipal, da construção em zonas ecologicamente sensíveis, em zonas já densamente urbanizadas e em todas as áreas intersticiais ou adjacentes aos solos urbanos, com total desprezo pelos valores ambientais e a qualidade de vida das populações, presentes e futuras, nenhum impacto positivo teve no preço da habitação. Pelo contrário: verificou-se um agravamento significativo.
Estas opções políticas têm consequências irreversíveis e catastróficas para a paisagem e o meio ambiente, comprometendo de forma permanente o equilíbrio e a qualidade do espaço urbano e natural. É o caso da Quinta dos Ingleses e de todas as restantes áreas ainda verdes significativas do concelho em perímetro urbano.
Repete-se, pois: o aumento da oferta não contribui para a diminuição do preço da habitação. Nos moldes em que está plasmado, apenas agravará a especulação imobiliária, agravando os desequilíbrios, pondo em causa o ordenamento do território e contrariando princípios e metas necessárias para o combate ao aquecimento global.
A necessidade de preservação da nossa “casa comum”, a emergência climática que se vive, os princípios de sustentabilidade e os recentes acontecimentos em Los Angeles e em Valência exigem que se olhe para o território de forma diametralmente oposta à consagrada neste diploma legal e que o mesmo seja revogado.
A crise da habitação não se resolve com a destruição do território e a conversão apressada dos solos rústicos em solos urbanos. Saiba a Assembleia da República perceber isto e garantir o cumprimento das normas e princípios a que Portugal está vinculado internacionalmente, à luz de um paradigma humanista e digno do atual milénio e não de visões meramente especulativas.
Carcavelos, 16 de janeiro de 2025,
A Direção
1) Vejam-se os relatórios das Nações Unidas, a Lei do Restauro da Natureza, a proposta de uma Diretiva Europeia de Monitorização do Solo, a Convenção da Diversidade Biológica, a Directiva Habitats e a Convenção de Berna, para além da Lei de Bases do Ambiente e dos princípios consagrados no RJIGT.
5) Muito inferior à média europeia.
6) Bastaria uma diminuição significativa do imposto sobre os rendimentos provenientes do arrendamento urbano para que passassem a estar no mercado muitos imóveis atualmente desocupados e para que se verificasse uma transição significativa para o mercado de arrendamento tradicional de imóveis atualmente explorados em regime de AL.
7) Não se define o que sejam, por exemplo, “casos em que a finalidade seja habitacional ou conexa à finalidade habitacional e usos complementares”, “necessidades demonstradas de salvaguarda de valores de interesse público relevantes em termos ambientais, patrimoniais, económicos e sociais”, “encargos das operações urbanísticas, (…) e das condições de redistribuição de benefícios e encargos, considerando todos os custos urbanísticos envolvidos”, “Seja assegurada a consolidação e a coerência da urbanização a desenvolver com a área urbana existente”, “Existam ou sejam garantidas as infraestruturas gerais e locais, assim como os equipamentos de utilização coletiva necessários e os espaços verdes adequados para cobrir as necessidades decorrentes dos novos usos”, “devem ser planeadas e executadas as medidas necessárias à salvaguarda da preservação dos valores e funções naturais fundamentais, bem como as medidas necessárias à prevenção e mitigação de riscos para pessoas e bens”, “depende da existência, na continuidade da área abrangida, de um regime de uso do solo que permita uma unidade harmoniosa”.